14 de junho de 2010

O Quarto

Era uma fazenda do século XIX. As paredes corroídas pela ação do tempo escondiam insetos ainda não registrados pelos entomólogos. Cada um dos 24 cômodos media cerca de 8x6m, que devido pouca mobília produziam sons aterrorizantes para os meninos. A iluminação era produzida através de ineficaz roda d’água e raramente funcionava, deixando a cargo das lamparinas a tarefa de revelar os mistérios noturnos. Debaixo do assoalho depositava-se a colheita e ainda sobrava espaço para moradores temporários e fixos: aranhas, mariposas, baratas e ratos. À beira do fogão à lenha filhos de escravos contavam histórias do sofrimento de seus antepassados que ali viveram, e dos lamentos que ouviam nas noites sem lua.
Os netos de D. Malha se divertiam com as histórias de assombração, com as guloseimas oferecidas e com as brincadeiras pela fazenda. Mas, o que interessava mesmo era entrar no único quarto proibido da casa: o Quarto Escuro. Ladeado pelos demais cômodos, no centro da grande construção, não tinha janelas, apenas uma imensa porta sempre cerrada por correntes e cadeado. A chave nunca saía do bolso do avental da velha e simpática senhora, que jamais permitia a entrada dos pequenos. Apenas as mulheres casadas entravam no quarto por breves instantes, sem dizer palavra aos que esperavam do lado de fora. Nestes momentos, em vão, encostavam o ouvido à porta na esperança de ouvir algum ruído revelador.
Findadas as férias todos retornam para suas casas deixando o tísico Fifi na companhia da avó, na esperança que recobrasse a saúde ao respirar por mais tempo os ares do campo. Com a ausência dos netos, D. Malha passou a se descuidar do Quarto Escuro deixando-o algumas vezes com a porta entreaberta. Foi em uma destas oportunidades que Fifi entrou. Na escuridão do quarto não conseguia distinguir os objetos. Assustado, olhou para o único lugar de onde vinha a luz. D. Malha, parada à porta, segurava uma faca de cozinha e um cesto, e acendendo a lamparina que ficava ao lado da porta revelou a Fifi entre outras preciosidades, potes de doces, latas de carne de porco conservadas na gordura, queijo, rapadura e querosene.

Um comentário:

Luiz Galdino disse...

O quarto escuro, sempre fechado, silencioso e indevassado constitui objeto recorrente nas histórias de mistério, o que não diminui em nada a sua magna importância como centro focal do cenário; nem a conclusão, já que por proposta ele pode abrigar das mais exóticas fantasmagorias a múltiplas surpresas e inesperados de toda ordem.
Neste caso, o conhecimento vivenciado do cenário ali construído, aliado à própria estrutura da narrativa, contribui para criar o clima necessário, aquela véspera de ânsia, que antecede o questionamento e a revelação do que o quarto referido ocultaria. E o fato do acesso local se fazer possível apenas a mulheres casadas, donas-de-casa, acrescenta um quê de estranheza ao relato. Afinal, não são justamente estas empedernidas senhoras que, no geral, costumam guardar segura distância de semelhantes lugares?
E por fim o elemento surpresa. Ao contrário de alentadas criaturas monstruosas, que se poderia imaginar no seu arcabouço, mortos vivos ou definitivos, personagens enlouquecidos e outros monstros, depara-se com uma gostosa surpresa. O que se fechava a sete chaves nada tinha de assombramento. Pelo contrário: ali se achavam guardados – maravilha das maravilhas – os doces caseiros de sabores variados, os lombos assados metidos na banha de porco e tudo mais que carecesse a um bom gourmet.
Uma surpresa gostosa para uma história deliciosa.

Luiz Galdino/ SP.24.11.2011