20 de março de 2008

Verdes Modernos

Que me desculpem meus visitantes se insisto em falar de Cataguases, cidade que me acolheu e onde passo os melhores momentos de minha vida pessoal e profissional. Mas não se enganem! Apesar de ser este um bom motivo, não é por ele que ando postando sobre a cidade. Quando se quer falar de cultura, Cataguases se torna uma fonte inesgotável de idéias, sendo esta a real razão de tamanha inspiração.
Recentemente recebemos a visita de Sérgio Paulo Rouanet, como já dito em postagem anterior, que nos presenteou com um texto maravilhoso que demonstra com magnificência o que vivemos por aqui. O motivo do presente foi a abertura da exposição “Verdes Modernos”, pertencente ao
Instituto Francisca de Souza Peixoto em Cataguases, na Fundação Oscar Araripe na cidade de Tiradentes. Leiam, deliciem-se, aproveitem!!!

A POMBA VERDE DE CATAGUASES


Já se falou em “milagre de Cataguases” para caracterizar o fato aparentemente inexplicável de que uma cidade interiorana de Minas Gerais tenha se transformado, no início do século 20, em importante centro de criação e irradiação de cultura, não somente nacional como internacionalmente.
A palavra “milagre” não é de todo absurda, se aplicada ao mistério de gênese da cultura, e em especial da obra de arte. Por mais que Marx explique que a tragédia Édipo-Rei teve como condição de emergência um modo de produção baseado no trabalho escravo e Freud nos assegure que a peça é apenas a objetivação estética de uma estrutura psíquica comum a todos os homens, resta que a peça só pode ser escrita quando um ateniense chamado Sófocles elevou-se acima dos condicionamentos que a tornaram possível, num ato de soberana liberdade. Essa liberdade é a parte irredutível de mistério que resiste a toda explicação determinista da criação artística.
Mas de outro ponto de vista, não há milagre, se levarmos em conta esses condicionamentos. No caso da tragédia antiga, além dos descritos por Marx e Freud, há os que têm a ver com a história da Grécia, com sua religião, com a função do teatro em sua vida social e política, etc. “Édipo-Rei” não se reduz a esses condicionamentos, mas sem eles a tragédia não existiria. O que acontece no plano individual, acontece também na vida das cidades. Não são raros os exemplos de pequenas cidades que exerceram um papel cultural desproporcional à sua importância objetiva. Uma cidadezinha da Alemanha, Weimar, transformou-se na capital cultural da Alemanha, em todas as áreas: na literatura, com Goethe e Schiller, na música, com Liszt, e na pintura, com a criação de museus expondo primas de Cranach e outros artistas de importância mundial. Uma aldeia nos arredores de Paris produziu uma das mais famosas escolas de pintura do século, a escola de Barbizon, com pintores da estatura de Théodore Rousseau. A pequenina cidade portuária de Honfleur, na Normandia, foi um ponto de concentração de pintores e escritores. Milagre? Sim, se levarmos em conta a qualidade excepcional da cultura produzida nessas localidades. Não, se considerarmos que em todos os casos houve condições prévias, como a existência de instituições culturais e educacionais, ou a proximidade de metrópoles e mercados.
Assim ocorreu com a cidade de Cataguases. Ela foi um extraordinário centro de geração e difusão de cultura no início do século passado. Seu foco foi a revista “Verde”, publicada entre 1927 e 1929, e na qual colaboravam jovens como Ascânio Lopes, Rosário Fusco, Guilhermino César, Christoforo Fonte Boa, Martins Mendes, Francisco Inácio Peixoto, Enrique de Resende, Oswaldo Abrittta e Camilo Soares. A revista estabeleceu contatos com os modernistas de Belo Horizonte e do Rio, mas sobretudo com os paulistas agrupados em torno da “Revista de Antropofagia”. O “Manifesto Verde” publicado em 1927 (portanto antes do “Manifesto Antropófago”, que é de 1928) faz questão, como os outros manifestos modernistas, de proclamar a independência do movimento com relação às formas poéticas tradicionais e às influências estrangeiras. As duas idéias estão condensadas numa frase de esplêndida arrogância: “Nós preferimos deixar o soneto em sua cova, com os seus quatorze ciprestes importados.” A repercussão do movimento Verde ultrapassou todas as expectativas e todas as fronteiras. Os elogios vinham de Drummond, Ribeiro Couto, Mario de Andrade, mas também de Blaise Cendrars, que publicou num dos números da revista um poema em francês intitulado “Aux jeunes gens de Catacazes”.
Mas a originalidade e o pioneirismo da cidade mineira não se limitaram à literatura. Como outras cidades do mesmo gênero, Cataguases cultivou outras formas de arte, num processo de criatividade cumulativa em que cada gênero parecia interagir com os demais, estimulando o desenvolvimento da vida cultural como um todo. Antes da literatura, fora o cinema que tinha florescido. O primeiro filme de Humberto Mauro foi realizado em Cataguases, em 1925. A julgar pelo título de um “jornaleco da terra” Jazz Band, a música nova não era desconhecida na cidade. A arquitetura moderna não tardou a chegar. Niemeyer projetou o painel de Portinari, representando Tiradentes, na entrada do Colégio. Nas praças se podiam ver obras de Bruno Giorgi, Cheschiatti, Marcier, Bologna e outros.
Milagre, se quiserem. Mas essa impressão de milagre se relativiza quando considerarmos que atrás do milagre existiam condições econômicas favoráveis, como as proporcionadas pelo desenvolvimento da indústria têxtil. A Companhia de Fiação e Tecelagem de Cataguases, fundada em 1905, marca o início do desenvolvimento industrial na cidade. Uma pré-condição mais direta foi dada pela existência de um excelente Ginásio Municipal, no qual tinham estudado quase todos integrantes da revista Verde. Eles se reuniam semanalmente no Grêmio literário Machado de Assis, ali debatendo as tendências mais inovadoras da literatura contemporânea.
Toda essa recapitulação é relevante ao momento em que o Instituto Francisca de Souza Peixoto, de Cataguases, e a Fundação Oscar Araripe, de Tiradentes, inauguram a exposição Verdes Modernos. Nessa exposição, realizada em Tiradentes, encontramos uma das vertentes do “milagre”, a da pintura. São telas de artistas extraordinários como Iberê Camargo, Guignard, Heitor dos Prazeres, e Van Rogger, para citar apenas alguns. Mas Oscar Araripe não é só pintor, é também poeta e prosador, dos mais ilustres do nosso mundo intelectual. Por isso, estou certo de que a partir de sua base na rua da Câmara ele vai tentar integrar as diversas vertentes da revolução verde original, abrangendo não só as artes plásticas como a literatura, a música, o cinema. De novo, já existem as pré-condições para esse projeto de renovação cultural: a prosperidade econômica da cidade, dada pela indústria de turismo, e a existência de instituições como o Centro Cultural Ives Alves, a Casa de Cultura da Fundação Rodrigo Melo Franco de Andrade, da UFMG, a Biblioteca Municipal de Tiradentes e a Biblioteca do Ó.
Tiradentes não vai substituir Cataguases nesse projeto de criação múltipla, mas vai levá-lo adiante, em estreita cooperação com a cidade que o originou.
Segundo lenda narrada com o historiador Joaquim Branco, o rio Pomba, que banha Cataguases, recebeu esse nome porque certo dia um caçador tirou numa pomba, que caiu no rio. Quando foi apanhá-la, ela escapuliu repetidas vezes, deixando-o furioso e com algumas penas na mão. Hoje sabemos para onde ela voou. Foi para Tiradentes, trazendo consigo a mensagem verde original a autonomia da arte e o diálogo entre os diferentes gêneros estéticos. Mas não se preocupem com isso, cataguasenses. A pomba verde não se esqueceu do caminho que leva a suas plagas natais, e passará o resto de sua longa vida voando entre as duas cidades, enriquecendo ambas, reverdecendo ambas.

Sérgio Paulo Rouanet.

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